DUPLAMENTE VULNERÁVEIS? Um estudo sobre consumidoras com deficiência física no processo ritualístico do casamento

TWICE VULNERABLE? A study about disabled consumers in the ritualistic process of marriage

Bruna Maria Pereira de Pontes, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2886-3719, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil. E-mail : brunapontes.99@gmail.com
Nelsio Rodrigues de Abreu, Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7024-5642, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil. E-mail: nelsio@gmail.com 


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RESUMO

Este artigo buscou compreender como as mulheres com deficiência física vivenciam o processo ritualístico do casamento sob a ótica da vulnerabilidade do consumidor. Foram conduzidas entrevistas semiestruturadas com dez mulheres com deficiência física, as quais vivenciaram essa fase entre os anos 2014 e 2019. As entrevistas foram feitas por chamadas de voz e áudios. Os dados obtidos nas entrevistas foram tratados por análise de conteúdo e as suas categorias foram definidas a priori com base na literatura referente ao consumo simbólico e vulnerabilidade do consumidor. São compreendidos no estudo, os significados, artefatos, momentos e fatores que impulsionam a vulnerabilidade neste contexto. A interpretação dos dados revela que mulheres com deficiência física podem vivenciar dupla vulnerabilidade. No entanto, é importante reconhecer sua capacidade de resiliência.

Palavras-Chave: Consumidor com deficiência. Vulnerabilidade do consumidor. Consumo simbólico.

 

ABSTRACT

The purpose of this paper was to understand how women with physical disabilities experience the ritualistic process of marriage from the perspective of consumer vulnerability. Semi-structured interviews were conducted with ten women with physical disabilities. The criteria for their participation were that they would have experienced this phase between the years 2014 and 2019. The interviews were carried out through voice calls and voice messages. The data were treated by content analysis and their categories were previously defined based on the literature regarding symbolic consumption and consumer vulnerability. The meanings, artifacts, moments, and factors that drive consumer vulnerability in this context are understood in the study. The interpretation of the data reveals that women with physical disabilities can experience two forms of vulnerability. However, it is important to recognize that they can present resilience by adapting their experiences. This paper contributes by extending the understanding of consumers with disabilities in an unexplored context of consumption.

Keywords: Consumer with disabilities. Consumer vulnerability. Symbolic consumption.


1 INTRODUÇÃO 

Durante toda a vida, os indivíduos vivenciam diversas mudanças de papéis e fases, as quais são marcadas por eventos de caráter performático. Os quais possuem o intuito de sinalizar tais transições e consolidar suas novas identidades diante dos demais membros da comunidade em que se está inserido (VAN GENNEP, 1977). Para sua realização são performados os ritos e rituais, que acontecem de forma intencionada, carregado de elementos, os artefatos, roteiro, os protagonistas e sua audiência (ROOK, 1985).

Conforme a magnitude do ritual na legitimação das identidades sociais e a necessidade dos elementos que o caracterizam, o consumo simbólico está presente, atribuindo motivações culturais e emocionais sobre o que será consumido, tanto nos artefatos e objetos quanto nos próprios serviços relacionados à celebração (CUPOLLIO; CASOTTI; CAMPOS, 2013). 

Carvalho e Pereira (2014) investigaram sobre as experiências de mulheres durante a transição liminar do casamento sob a luz da vulnerabilidade do consumidor. Assim, a da vulnerabilidade se concentra estado individual (BAKER; GENTRY; RITTENBURG2005), que, durante a transição de noiva para esposa, as consumidoras podem se encontrar em uma relação de descontrole em suas interações com o mercado, devido às expectativas de um dia perfeito. 

Outro público frequentemente abordado em estudos de vulnerabilidade é o consumidor com deficiência. Na maioria dessas pesquisas, a problemática é tratada a partir das características individuais da pessoa com deficiência, em consideração à acessibilidade, e as questões sociais que envolvem aspectos como, discriminação e falta de representatividade (BENJAMIN et al., 2021; BASU et al., 2023). 

Assim, percebe-se a necessidade de pesquisas voltadas às experiências de consumo das pessoas com deficiência e que essas experiências compõem os rituais, através do consumo ritualístico, surge a questão norteadora da presente pesquisa, como as consumidoras com deficiência física vivenciam o consumo relativo ao processo ritualístico do casamento?

 Esse questionamento é feito seguindo a concepção de que, as noivas podem se encontrar em um estado de vulnerabilidade pela transição de papel social e por já se ter uma compreensão das pessoas com deficiência enquanto consumidoras potencialmente vulneráveis. Dessa forma, a presente pesquisa buscou compreender como mulheres com deficiência física vivenciam o processo ritualístico do casamento sob a perspectiva da vulnerabilidade do consumidor. 

Além da presente seção, o artigo se divide em: referencial teórico, procedimentos metodológicos, análise dos resultados e as considerações finais.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 Consumo Ritualístico no ritual do casamento

Diversos são os momentos e papéis a serem vivenciados pelos indivíduos durante a vida, do nascimento à morte há uma miríade de eventos, os quais comunicam e categorizam tais identidades a serem internalizadas nessas etapas em nível individual e coletivo, os ritos e rituais (MCCRACKEN, 2003). Van Gennep (1977) categoriza os ritos em três níveis, os preliminares, que correspondem aos rituais de separação; liminares, rituais de transição e os pós-liminares, os rituais de incorporação.

O presente estudo compreendeu especificamente um tipo, o ritual de transição, também conhecido como de passagem. As cerimônias que caracterizam mudanças de papéis servem para acompanhar e dramatizar eventos de maior magnitude, como a morte e o casamento (BELL, 1997). Segundo Rook (1985) os rituais apresentam quatro elementos essenciais para sua realização, sendo eles, os artefatos, o roteiro, os papéis performáticos do ritual e a audiência. Para sua ocorrência, todos os momentos e objetos atrelados são intencionados e seguem uma organização aceita e construída culturalmente. Assim, o consumo ritualístico incorpora rituais na concepção e utilização dos produtos, proporcionando novas experiências e uma sensação de controle (WANG; SUN & KRAMER, 2021; SONG et al., 2022).

Esses pontos atribuem ao consumo ligado à solenidade o caráter simbólico como forma de auxiliar na legitimação e contextualização das fases da vida (CUPOLLILO; CASOTTI; CAMPOS, 2013) e emoções tanto positivas quanto negativas podem impulsionar essa tendência por meio de diversos mecanismos (WANG; SUN & KRAMER, 2021; SONG et al., 2022). Especificamente no casamento, são percebidos diversos objetos que carregam significados e importâncias na cerimônia, como as alianças, que conferem o status de casados (VAN GENNEP, 1997) e o vestido de noiva (MIN, 2018; MYUNG & SMITH, 2018). 

 Para Sykes e Brace-Govan (2015) o momento pré-casamento seria um rito de passagem incluso no próprio processo transitório, pois a identidade de esposa ainda não está estabelecida e legitimada. Portanto, a noiva ainda se encontra em um limbo entre solteira e casada. Esse tipo de evento é atrelado à expectativa do ‘felizes para sempre’, um compromisso para toda a vida, além de se fazer presente o consumo simbólico, pode ser compreendido como uma experiência de consumo extraordinária. Isso porque, tal ritual é associado às emoções dos seus principais personagens, os noivos, diante da mudança de vida, que fica na memória dos indivíduos, contribuindo significativamente para o seu desenvolvimento pessoal (VAN BOVEN; GILOVICH, 2003; GILOVICH et al., 2015; BOGDANOVA; SIROTINA, 2023).

Höpner (2017) considera que o foco principal da experiência de consumo se situa no contexto social específico do mercado em que o consumidor vive suas experiências. Pelo caráter único, ao consumo é atribuída uma complexidade que decorre de diversas variáveis, humanas, situacionais e tecnológicas. Ademais, como o ritual do casamento também se refere aos serviços, como a escolha do ambiente em que será realizada a cerimônia, há outros fatores importantes, por exemplo, o ambiente físico e a atmosfera da experiência (HOLBROOK; HIRSCHMAN, 1982; WANG et al., 2024).

Portanto, no presente artigo o ritual do casamento é entendido como uma experiência de consumo extraordinária dada a importância que é atribuída a essa celebração. Além disso, para a sua realização, o consumo se faz presente de maneira simbólica ao atribuir motivações e significados aos artefatos, momentos e papéis. Dada a notoriedade do consumo nesse momento, se faz necessário visualizar suas possíveis implicações com relação ao estado liminar.

2.2 Vulnerabilidade do Consumidor

A vulnerabilidade do consumidor é definida como um estado de impotência que emerge de um desequilíbrio no mercado ou do consumo de mensagens de marketing e produtos (BAKER; GENTRY; RITTENBURG, 2005). Ou seja, o controle do indivíduo é retirado em diversas situações de consumo. Essa falta de controle pode resultar em casos de situações hostis, risco físico, emocional, danos em seu bem-estar psicológico e a inabilidade de se posicionar em ambientes de consumo (HILL; SHARMA, 2020; SALISBURY al., 2023).

Hamilton et al. (2015) consideram a vulnerabilidade do consumidor como um estado indesejável em que os indivíduos afetados são expostos a diversas condições que dificultam a forma em que participam e reagem sobre o que é proposto pelo mercado. Essa vivência pode assumir caráter transitório ou permanente (FARIA et al., 2017), como no caso dos estados individuais, como ocorre em experiências de consumo conspícuo em rituais de formatura (COELHO et al., 2017) e o no processo ritualístico do casamento (CARVALHO; PEREIRA, 2014; BOGDANOVA; SIROTINA, 2023). 

Diante da experiência de vulnerabilidade, os indivíduos desenvolvem mecanismos e formas de superá-las ou contorná-las, e em alguns casos podem resignar-se. Neste sentido, Baker e Mason (2012) propuseram um modelo conceitual voltado a vulnerabilidade e a resiliência do consumidor (figura 1).

Figura 1. Modelo conceitual da teoria da vulnerabilidade e resiliência do consumidor. 

Fonte: Adaptado de Baker e Mason (2012).

Neste modelo, existem quatro pressões determinantes à experiência de vulnerabilidade, sendo elas, individual – características biofísicas e psicossociais, a família, comunidade e as forças macroambientais – diferenças entre classes sociais, tecnologias outras. Para que ocorra, um evento disparador é necessário, ou seja, um acontecimento negativo na vida do indivíduo, tal qual a perda de emprego, luto, acidentes, o que inicia o estado de vulnerabilidade através da interação entre as pressões e tal evento.

Após vivenciar a vulnerabilidade, ocorre o pós-choque, que corresponde ao momento de atuação dos envolvidos em superar ou perpetuar a situação. Na busca por mitigar ou encerrar a vulnerabilidade, são desenvolvidas soluções, as quais podem ser desempenhadas por organizações não governamentais, pelo poder público, organizações e o próprio consumidor. A partir desse momento se dá o processo de resiliência do consumidor, como forma de reação à vulnerabilidade.

2.3 O Consumidor com Deficiência como vulnerável

Os estudos em marketing frequentemente abordam a experiência de vulnerabilidade do consumidor com deficiência, evidenciando uma tendência e necessidade de explorar as experiências e percepções dessas pessoas (PAVIA; MASON, 2014). Destaca-se também a necessidade de compreender esses indivíduos em diversos contextos, ambientes de consumo, principalmente, aqueles que são parte do cotidiano individual (LIM, 2020; ECHEVERRI; SALOMONSON, 2024).

Neste sentido, diversos pesquisadores têm buscado entender como as pessoas com deficiência consomem e como são suas experiências. Celik e Yakut (2021) tratam sobre a relação vulnerabilidade percebida e a satisfação nos momentos de compras para pessoas com deficiência visual, e, demonstra que esses consumidores buscam normalidade. Echeverri e Salomonson (2019) buscaram compreender sobre o consumidor com deficiência nas interações com serviços de mobilidade, analisando as causas, formas e mecanismos de coping. Assim, a vulnerabilidade humana pode ser categorizada em três formas principais: física, psicológica e social, cada uma abrangendo elementos distintos como predisposições genéticas, traços de personalidade e influências do contexto social, respectivamente. Paralelamente, as estratégias de coping utilizadas para enfrentar adversidades e estresses são classificadas em quatro tipos: problemático, focado na solução direta de problemas; emocional, direcionado ao gerenciamento das emoções; de evitação, que busca ignorar ou negar a situação estressante; e baseado em suporte social, que inclui a busca de ajuda externa. A interação entre as formas de vulnerabilidade e as estratégias de coping é crucial para o desenvolvimento de intervenções eficazes em saúde mental e bem-estar, apontando para a necessidade de abordagens personalizadas que considerem as peculiaridades individuais no enfrentamento de desafios (SALOMONSON, 2019; JUEN; KERN & THORMAR, 2023; ORRU et al., 2023; KUHLICKE et al., 2023). 

No contexto brasileiro, Mano (2014) aborda sobre o consumidor com deficiência nos ambientes de varejo e percebe que diversas limitações e barreiras são colocadas para os mesmos, e a experiência ocorre seguindo em três dimensões, estrutural, sociocultural e pessoal. Faria et al. (2017) centraram seus esforços a compreender a invisibilidade dos consumidores com síndrome de down parte do meio sociocultural, da mobilidade urbana às interações sociais. 

2.4 O caráter transitório do Casamento e a Vulnerabilidade das noivas

Sob a compreensão de que os estados individuais operam na experimentação de vulnerabilidade, o momento de transição de papéis, como neste caso, de noiva para esposa, também pode influenciar nessa situação de desequilíbrio entre a mesma e o mercado (BAKER; GENTRY; RITTENBURG., 2005; HAMILTON; DUNNET; PIACENTINI, 2015; HELBERGER et al., 2022). Portanto, imersas em suas emoções e na busca pelo dia perfeito, pela realização de um conto de fadas e pelas questões sociais que envolvem essa celebração, a noiva pode tomar suas decisões de consumo sem raciocinar de maneira estratégica e reflexiva, baseando-se apenas em suas emoções.

Ao saber disso, muitas vezes, o mercado de noivas se utiliza de mecanismos para influenciá-las, como ocorre com relação aos valores de bens e serviços superfaturados ou colocar a opinião de um cerimonialista, por exemplo, como principal fator no momento de fazer escolhas (CARVALHO; PEREIRA, 2014). Essa mesma problemática também é percebida em outros rituais, cujas transições se apresentam de maneira marcante ou agregam um nível de prestígio social, como nas formaturas (COELHO et al., 2017). 

Se faz necessário pontuar que a discussão sobre vulnerabilidade do consumidor não abarca as noivas enquanto consumidoras vulneráveis. Para Commuri e Eckici (2008) seria um consumidor em desvantagem. Ou seja, essas situações por si só não são suficientes para caracterizar a vulnerabilidade, mas a possibilidade de um desequilíbrio na relação de consumo é latente. 

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A presente pesquisa buscou compreender como mulheres com deficiência física vivenciam o processo ritualístico do casamento sob a perspectiva da vulnerabilidade do consumidor, uma pesquisa qualitativa foi desenvolvida com mulheres com deficiência física. Beudaert (2018) expõe a necessidade de estudos cujo enfoque seja nas características dos consumidores com deficiência, como, idade, gênero e tipo de deficiência. Sendo assim, optou-se por investigar exclusivamente as mulheres com deficiência física no processo ritualístico do casamento. 

Isto posto, se demonstrou mais coerente o percurso de uma pesquisa qualitativa para desenvolver o presente estudo, por permitir entender o fenômeno com base nas subjetividades de quem o vive (FLICK, 2009). Seguindo esse fluxo, decidiu-se realizar entrevistas com roteiro semiestruturado, o qual é detalhado posteriormente.

Para a seleção das participantes, dois critérios foram adotados: o casamento já deveria ter ocorrido, sob o entendimento de que a transição noiva-esposa já havia ocorrido, o segundo compreendeu a um recorte temporal, de até 5 anos entre a época em que a pesquisa foi realizada, no ano de 2021, e a cerimônia. Sobre o contato com as entrevistadas, a pesquisadora efetuou buscas na rede social Instagram, através das hashtags relacionadas a casamento e deficiência, sendo elas: #casamentoacessível, #mulhercomdeficiência e #acessibilidadeparatodos.

 Foram feitas observações com as fotografias na busca de encontrar fotos de casamento ou que remetessem à cerimônia. Dessa forma, vinte e seis perfis foram contatados através de mensagens, com uma breve apresentação e explicação sobre a pesquisa. Dezesseis retornaram as mensagens e dez participaram da pesquisa, as quais estão descritas no quadro 1. A saturação foi percebida na décima entrevista, cessando esse processo.

Quadro 1 – Caracterização e Perfil das Entrevistadas

Noiva

Idade

Profissão

Causa da deficiência

Ano do casamento

N1

40

Psicanalista

Sem diagnóstico

2015

N2

27

Consultora de beleza

Amputação de membro inferior direito

2019

N3

31

Nutricionista

Mielite transversa viral

2017

N4

33

Bancária

Acidente de motocicleta

2016

N5

29

Advogada

Acidente de carro

2017

N6

40

Profissional de Mídias Digitais

Tiro

2019

N7

36

Administradora

Acidente de carro

2014

N8

44

Artista plástica

Distrofia muscular progressiva

2016

N9

42

Dona de casa

Acidente de motocicleta

2018

N10

25

Pedagoga

Acidente de motocicleta

2019

Fonte: elaboração própria (2024).

Optou-se por não utilizar o nome das mesmas para que a privacidade fosse mantida. Além disso, para facilitar o processo de análise e leitura, as participantes foram denominadas como N, indo de 1 a 10. Os dados foram coletados por chamadas de voz e áudios via WhatsApp, outras alternativas foram dadas, chamadas de vídeo, chamadas de voz e áudios, para que uma escolha mais confortável e possível diante da disponibilidade das mesmas. As entrevistas duraram em média trinta e três minutos e seguiram o roteiro exibido no quadro 2.

 

Quadro 2 – Roteiro de pesquisa.

CATEGORIA

DIMENSÃO

QUESTÃO TEMA

Consumo simbólico

(ROOK, 1985; CARVALHO; PEREIRA, 2014)

Significados

  • A realização do casamento sempre foi algo importante para você?
  • Quais foram os principais aspectos que você levou em consideração durante o planejamento?

Artefatos

  • Como você se sentia quando comprava algo referente ao casamento?
  • Qual objeto que você considera crucial para a realização do casamento? Por quê?

Momentos

  • Qual o momento no casamento que você considera ser o mais especial da cerimônia? Por quê?

Vulnerabilidade

(BAKER; GENTRY; RITTENBURG2005; MANO, 2014)

 

Acessibilidade estrutural

  • Como se deu a escolha do local? Quais fatores levou em consideração?
  • Após as empresas saberem sobre sua deficiência, alguma delas alterou valor de bens ou serviços?

Sociocultural

  • Como percebe suas interações com vendedores e fornecedores durante o planejamento do casamento?
  • Você percebeu algum preconceito devido a sua deficiência por parte de vendedores ou fornecedores? Se sim, como reagiu?

Pessoal

  • Como percebe sua experiência na realização do casamento? Faria algo diferente? Se sim, por quê?
  • Você acredita que de alguma forma a sua deficiência possa ter limitado a sua experiência no planejamento e/ou concretização do casamento?
  • Você gostaria de relatar algo em especial?

Fonte: Elaboração própria (2024).

Conforme exposto no quadro 2, o roteiro se dividiu em duas categorias, consumo simbólico e a vulnerabilidade. Os mesmos são desmembrados em dimensões que correspondem aos aspectos relevantes a cada uma delas. Os significados, artefatos e momentos com relação ao ritual do casamento e a acessibilidade estrutural, as dimensões, sociocultural e pessoal para compreender a experiência de vulnerabilidade das participantes. As dimensões socioculturais e pessoal em vulnerabilidade tanto correspondem à possibilidade de vulnerabilidade transitória quanto à deficiência.

Para a análise dos dados, foi conduzida uma análise qualitativa do conteúdo (BARDIN, 2011), seguindo as etapas de: pré-análise, exploração e tratamento. Os dados foram tratados com base nas categorias e dimensões estabelecidas no roteiro, definidas a priori. Essa decisão foi com o intuito de reduzir as chances de vieses ao se analisar os dados.

4 ANÁLISE DOS RESULTADOS

Nesta seção, os resultados da pesquisa são apresentados. A análise dos dados seguiu as categorias e subcategorias com base nas categorias e dimensões definidas no roteiro de entrevista: Consumo Simbólico: significados, artefatos e momentos e Vulnerabilidade do Consumidor: acessibilidade estrutural e as dimensões, sociocultural e pessoal.

4.1 Importância atribuída à celebração do casamento

Para todas as participantes, a solenidade é considerada como algo importante a se vivenciar, sendo atribuída no momento em que se conhece a pessoa amada ou anteriormente a isso. N1, por exemplo relatou que “sempre quis casar, construir uma família, e tudo o que compreendia a este universo, sempre quis muito”. No mesmo sentido, N2 expressa em sua fala, “antes mesmo de conhecer meu esposo, eu já tinha esse interesse... em ter um casamento”. Outro ponto visualizado durante as análises é sobre como após adquirida a deficiência, algumas das participantes passaram a dar maior valor e atribuir significados aos seus relacionamentos e fases da vida, conforme se pode observar a seguir:

Na verdade, não, não era assim algo que eu desejasse muito, algo que eu sonhasse para mim “aí, eu quero me casar de branco na igreja e tal”. Não, não tinha nada disso, de vez em quando meu marido e eu, a gente até cogitava a possibilidademas nada sério, sabe. Só comentava assim e deixava passar. Ai quando eu me acidentei, eu comecei a pensar em um monte de coisas destas que a gente vai deixando para depois, sabe: quando der, quando sobrar dinheiro, quando sobrar tempo... E a gente vai empurrando com a barriga, sabe [...] (N7)

Em falas como essa se torna possível visualizar que, diante de uma mudança de vida como essa, a experiência da deficiência pode propiciar a busca por novas experiências de consumo extraordinárias (HÖPNER, 2017). 

4.2 Aspectos relevantes ao planejamento da cerimônia

A realização de cerimônias que sinalizam transições e agregações à identidade dos indivíduos necessitam de planejamento e atenção, dado o seu caráter único ou pouquíssimo repetido ao longo da vida (VAN GENNEP, 1977; BELL. 1997). Dessa forma, é imprescindível que decisões sejam tomadas para que o ritual seja o mais próximo do esperado por quem o está a viver. Com relação ao casamento, de maneira geral, diversos são os aspectos que demandam atenção, dos objetos utilizados no ritual, buffet ao local da cerimônia (CARVALHO; PEREIRA, 2014). 

Considerando isso, as entrevistadas foram questionadas sobre as decisões e considerações tomadas no planejamento do evento. Além dos pontos levantados no estudo de Carvalho e Pereira (2014), a acessibilidade emergiu como uma grande preocupação, o que enfatiza a realidade dos consumidores com deficiência, encontrar ambientes acessíveis capazes de lhes oferecer experiências de consumo satisfatórias (MANO, 2014; PAIVA; MASON, 2014). Tal preocupação é explicita nos recortes a seguir.

Acho que os aspectos que eu levei em consideração foi um lugar acessível, que não tivesse nenhum cunho religioso. Foi difícil achar um lugar que tivesse banheiro, que eu conseguisse entrar, que fosse preparado para receber uma pessoa usuária de cadeira de rodas (N6).

A escolha do local foi algo que a gente se preocupou bastante pela acessibilidade e um espaço não muito grande, porque não tinha tantos convidados (N9).

Após a escolha de um local em que houvesse acessibilidade, a preocupação com o orçamento da cerimônia foi percebida como algo importante para a maioria das noivas: “então, como se trata de casamento, eu ficava meio preocupada, né... porque tudo parece ser mais caro” (N2), “Quantidade de convidados, limitar o valor de gastos, encontrar local, decoração, buffet, todas essas coisas” (N5). Outro aspecto é a questão custo-benefício, em que as mesmas buscam garantir que as suas expectativas fossem satisfeitas da maneira mais genuína possível, o que é expresso na fala de N3 “eu quis realizar o máximo do que eu tinha em mente, idealizei o que eu gostaria que tivesse, e eu tentei buscar os melhores fornecedores de acordo com o que eu tinha idealizado”. Portanto, é possível depreender que o que é tido como relevante para a celebração da cerimônia depende em suma, de três fatores, a acessibilidade, o fator financeiro e a satisfação da expectativa.

4.3 Artefatos e Momentos do ritual

Com base nos elementos dos rituais propostos por Rook (1985) buscou-se compreender sobre o papel dos objetos e artefatos na cerimônia do casamento. Para as entrevistadas, o objeto de maior valor emocional é a aliança. Depois deste, o vestido (MIN, 2018; MYUNG; SMITH, 2018) também é tido como um objeto que carrega grande significado para elas. Outro ponto importante sobre o vestido, é a preocupação das mesmas diante da necessidade de que os mesmos sejam confortáveis, o que é expresso em falas como: 

No caso do vestido, eu tive muita dificuldade em escolher o vestido, eu tinha muita dificuldade com relação às provas, ai como eu não gostei de nenhum, era difícil de vestir, então eu tive que mandar fazer um vestido especialmente para mim. Eu fui em uma loja e montamos um para mim. Então da mesma forma, elas foram me passando o valor, não sei se com uma pessoa sem deficiência teria alguma diferença no valor (N1).

O vestido de noiva foi uma das coisas, assim, que eu nunca tinha usado um vestido assim, sabe. Então, eu achava assim que tipo “como é que é desconfortável para pôr, fica puxando (N8).

 Então... Eu não tive aquela coisa, de colocar o vestido sonhado, porque eu tinha de escolher algo que se adequasse àquela situação... (N7).

 Porque olha, nem tudo dá certo sendo cadeirante, por exemplo, vestido, eu acabei mandando fazer, então eu uso fralda e de repente dar um pepino e eu ficar toda suja lá (N6).

Através dessas falas, se faz possível perceber a mesma realidade que ocorre em outros contextos de consumo que as pessoas com deficiência vivenciam, a dificuldade em encontrar bens e serviços adaptados (DUBOST, 2018). Nesse caso, o vestido, peça que para pessoas sem deficiência seria um dos principais artefatos, e que causa enorme comoção (CARVALHO; PEREIRA, 2014), é para as respondentes algo preocupante e dificultoso.

Com relação aos momentos que compõem a cerimônia, a entrada das alianças, a entrada da própria noiva são momentos que apresentam grande significado para as participantes da pesquisa. Além disso, outros momentos são criados pelos noivos, tais como: a cerimônia das areias para simbolizar a união em si e outras pessoas importantes, como os padrinhos (N6).

Então assim, a entrada das alianças na minha mente era para ser a minha avó e meu avô entrando com as alianças, as pessoas mais velhas da minha família, que tinham um casamento de longa data entrando com as alianças. Porém a minha avó faleceu quase um ano antes do casamento [...] então eu fiquei pensando em como eu iria substituir a minha vó naquele momento, ela era insubstituível naquele momento? [...] o meu priminho mais novo entrou com as alianças, ele tinha de três para quatro anos [...] assim, aquele momento foi um momento tão especial que parecia que ela estava ali naquele momento, tanto é que assim, todo mundo chorou na igreja. (N3)

A minha entrada na igreja, com toda certeza, sem dúvidas... O momento em que todos os olhos estavam voltados para mim, e o meu esposo, noivo na época, estava lá, com os olhos brilhando... minha família também, e todas as pessoas importantes... não teve emoção maior. (N10)

Atráves destes recortes é possível visualizar que, a experiência de consumo neste contexto é subjetiva e os artefatos, objetos e momentos desempenham um importante papel na caracterização da cerimônia em si. Outro ponto, é a importância da audiência e demais participantes no ritual (VAN GENNEP, 1997) que também reagem, se emocionam e se deixam agregar pelo ritual. No contexto de formatura, abordado por Coelho et al. (2017) o maior papel desses outros participantes é financeiro, enquanto nessa realidade é emocional, ajudando a também construir a experiência.  

4.4 Dupla vulnerabilidade da Consumidora com Deficiência Física no processo ritualístico do casamento

Sob a perspectiva de que os estados transitórios também podem ocasionar na experimentação da vulnerabilidade do consumidor (COELHO et al., 2017; CARVALHO; PEREIRA, 2014) e que o consumidor com deficiência se depara com diversas barreiras estruturais e sociais que os colocam em uma situação de desequilíbrio diante do mercado (BAKER et al., 2005; HAMILTON et al., 2015), esta parte da análise dos dados é centrada na dupla vulnerabilidade: a vulnerabilidade do consumidor com deficiência e pelo estado transitório, sendo expressas nos subtópicos a seguir.

4.4.1 Consumidoras com Deficiência e os ambientes físicos

Incialmente, buscou-se compreender sobre acessibilidade estrutural (MANO, 2014) no momento de escolha de ambientes para a realização do casamento. Desta maneira, ao questionar sobre este tópico, as participantes pontuaram a falta de acessibilidade não somente nos ambientes literalmente relacionados à cerimônia, mas em outros ambientes de consumo, como, salões de beleza e lojas de vestidos. Explicitado a seguir nas falas abaixo:

Eu quis casar em uma igreja que foi importante para mim a vida inteira e que eu achava assim, muito bonitinha, muito aconchegante. Então eu já conhecia né, foi em uma igreja de convento franciscano, então por aí já se tem uma ideia, todo bonitinha, toda pequenininha. Nas partes que não tinha acessibilidade, eu conversei com as administradoras, as freiras e onde não havia acessibilidade e fiz com que se tornasse acessível, o que era muito importante para mim [...]. (N1)

Então, eu casei na igreja. E a igreja não é acessível não sei se você é católica, mas a igreja tem o altar que sempre tem degraus. Então eu precisei de uma rampa, então eu precisei falar com o padre e aí para poder fazendo essa rampa. (N3)

Com as transcrições acima, percebe-se que nas igrejas as condições de acessibilidade são precárias, proporcionando uma condição de vulnerabilidade do consumidor (BAKER; GENTRY; RITTENBURG 2005). No entanto, as participantes buscam contornar tal problemática, entrando em contato com os responsáveis pelos ambientes, ocorrendo a experiência de resiliência (BAKER; MASON, 2012). Quanto aos ambientes voltados ao mercado de noivas é percebida a mesma problemática, conforme os recortes abaixo.

Senti preocupação com a acessibilidade do local onde fechei o aluguel do vestido, não havia acessibilidade pra prova do vestido que era no andar de cima, mas o estilista que me atendeu fez questão de me levar no colo e a equipe toda me mimava muito. (N2)

Alguns lugares eu gostaria de ir e eu não pude por causa da acessibilidade. Teve alguns lugares que eu estava procurando vestidos, e eu via vestidos lindos na vitrine, só que a seção de noivas era no segundo piso e não tinha elevador, não tinha nada. E aí me falavam “ah, mas que modelo você quer, que a gente traz”. E, caramba, não tem um modelo que você quer. A gente bate o olho e pronto, tem que ir provando. Então eu não tinha essa possibilidade. (N7)

É muito difícil achar salão acessível aqui na cidade onde eu moro, a maioria dos salões não tem acessibilidade, principalmente na parte das noivas, digo acessibilidade entre aspas, já que o salão só é térreo. Mas a parte das noivas, que muitas vezes é na parte de cima do salão, então foi bem difícil de achar um que era mais térreo, mas tinha dois degraus. Então a cabelereira fez a rampa para que eu não tivesse que subir os degraus. (N3)

Na verdade, eu moro numa cidade muito pequena, então assim, eu não tive tantas possibilidades, eu fui organizando mais a distância. Eu contratei uma cerimonialista, e eu presava muito a acessibilidade, se o local que iria me atender para eu escolher doce, para eu me arrumar, local da festa, a acessibilidade. (N10)

Diante disso, é possível perceber que, as participantes da pesquisa, nesta ambiência ainda não são percebidas como consumidoras aptas, diante da desconsideração das empresas em lhes proporcionar ambientes acessíveis, o que corrobora com Silva et al. (2015) no estudo sobre acessibilidade no meio hoteleiro, que a vulnerabilidade do consumidor com deficiência não surge pela deficiência, mas pela falta de acessibilidade, o que demonstra a falta de consideração às necessidades desse público.

Vale ressaltar que o despreparo não se encontra apenas na falta de acessibilidade estrutural, mas em alguns casos, na falta de atenção às necessidades do indivíduo, por exemplo, lidam com a pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida, o que é explicito na fala abaixo:

Os prestadores de serviços não estão preparados para lidar com uma população com deficiência ou que tenha qualquer limitação de movimento... por exemplo, no dia do meu casamento, um dos convidados tinha bastante dificuldade de locomoção, usava bengala já, um senhor idoso e eu usuária de cadeira de rodas, a cerimonialista foi lá e fez o cara ir até a mim com a maior dificuldade. (N5)

Como base no exposto, é possível visualizar como a mulher com deficiência neste contexto de consumo se encontra em uma relação desequilibrada para com o mercado, posto que toda a problemática se inicia a partir do básico, a falta de acessibilidade. Ademais, como a situação de vulnerabilidade é compreendida em outras dimensões, elas são tratadas nas subseções a seguir, que dizem respeito aos pontos atitudinais e as relações entre a pessoa com deficiência com os ambientes de consumo e aspectos relacionados a autoestima e auto identidade enquanto consumidor com deficiência.  

4.4.2 Fatores socioculturais

Quanto às interações com as organizações referentes à celebração do ritual, as entrevistadas apontam a busca por envolver-se com cerimonialistas, assessores, fornecedores e demais prestadores de serviços que já conheciam e confiavam. Tal preocupação é expressa na fala de N1, “busquei pessoas que eu já conhecia e que já me conheciam, e que já tínhamos alguma relação de amizade”. Ainda neste tópico, diante dos fatores que impulsionam a vivência da vulnerabilidade do consumidor, buscou-se compreender também, se as participantes de alguma forma se viram em uma situação de discriminação ou capacitismo (BAKER; GENTY; RITTENBURG, 2005). Posto isso, nenhuma delas apontou qualquer situação que as colocassem como vulneráveis em nível atitudinal. 

A gente não teve problema nenhum com vendedores ou fornecedores quanto à discriminação, assim, foi tudo muito tranquilo, até como era uma coisa diferente, eles estavam super empolgados, como era um aniversario e um casamento, eles ficaram super empolgados, foi bem tranquilo. (N10)

Não, eu acho que foi tranquilo, de maneira satisfatória. Não teve dificuldade pelo fato de ser usuária de cadeira de rodas. O problema mesmo é falta de acessibilidade nos locais. Por exemplo, no salão que eu fui me arrumar não tinha acessibilidade e se eu fosse hoje eu iria trocar de lugar, mas é muito difícil de achar. O problema mesmo é a acessibilidade estrutural. Mas pelo fato da deficiência não tive problema algum. (N5)

Além disso, N3 acrescentou, “eu não contrataria a empresa se ficasse sabendo ou fosse vítima de qualquer coisa desse gênero”. Em momentos depois, durante a entrevista, ela abordou a necessidade de entendimento por parte das empresas sobre a habilidade da pessoa com deficiência enquanto consumidora, conforme o recorte abaixo.

[...] independente de sermos cadeirantes ou termos uma certa deficiência, nós somos consumidores da mesma forma. Nós podemos consumir até mais, o que eu via de diferente eu queria para o meu casamento. Então a gente precisa desmistificar que cadeirante não é consumista e nós somos sim um público consumidor, que realiza, que faz. Eu acho que isso, que me veio na mente agora, porque, não sei, as pessoas tendem a pensar que deficiente “coitados”, que ele não tem um ideal, que não consome, que não compra, que não se vende para deficiente. E não é assim, o deficiente ele tem um acesso tanto quanto ou até mais que certos andantes, então é de igual para igual. (N3)

Através desta fala se faz possível visualizar a constante preocupação de pessoas com deficiência sobre serem ou não percebidas enquanto consumidoras aptas a vivenciar todas as experiências de consumo possíveis, o que corrobora com Goodrich e Ramsey (2011). Percebe-se assim a falta de consideração do mercado acerca das necessidades e expectativas das consumidoras (BENJAMIN et al., 2021).

4.4.3 Fatores pessoais e a percepção de vulnerabilidade

Diante da possibilidade da experiência de um consumo vulnerável pela transição de papéis sociais, buscou-se compreender sobre a experiência das noivas com a cerimônia de forma completa. Dada a importância deste ritual na vida das entrevistadas, quase todas apontaram a ansiedade como um dos principais sentimentos vivenciados durante todo o processo e muitas das escolhas baseavam-se principalmente nas emoções (CARVALHO; PEREIRA, 2014), buscando o dia perfeito. Para explicitar de maneira geral a percepção das entrevistadas, abaixo encontra-se a fala de uma das entrevistadas que resume bem como as mesmas enxergam a vulnerabilidade diante do casamento.

Como noiva, muita ansiedade e insegurança. Porque, eu nunca tinha parado para olhar casamento com os olhos de quem espera fazendo aquilo ali um dia. Então eu nunca pensava muita atenção nos detalhes e tal. Então assim eu ficava insegura se realmente ia ficar bonito, se ia dar certo, ficava extremamente espantada com os preços de tudo, porque é absurdamente caro, né, casar. Até porque eu nem sabia aproximadamente quanto eu poderia gastar, já que o noivo não tinha me dado “ok”, né. (N7)

Como N7, todas pontuaram a ansiedade como principal sentimento, e que mudariam coisas em suas cerimonias, inclusive, N3, que se casou sem o auxílio de uma assessoria, após a experiência do planejamento passou a ver sua importância e necessidade, posto que todas as obrigações e decisões eram suas, sem suporte algum. N5 contou com o suporte de uma cerimonialista, mas considerou que se sentiu lesada, quando parte da decoração não foi conforme o planejado com a cerimonialista, “eu pedi flores naturais na decoração do altar, e quando eu vi, de cara, sabia que não eram... e tipo, eu paguei por elas”. N2 também relatou problemas com relação à cerimônia, e em sua fala deixou claro: “Eu vejo que essas dificuldades não foram por questão pessoal mesmo, pela minha deficiência, mas sim pela falta de profissionalismo deles mesmo” Falas como a de N5 e N3  corroboram com o estudo de Carvalho e Pereira (2014) ao demonstrar uma das situações que proporcionam um desequilíbrio entre as noivas e o mercado. Além disso, a preocupação com o preço, sentimentos como insegurança e ansiedade também correspondem aos achados de Carvalho e Pereira (2014).

Ademais, pontua-se sobre a disposição de algumas das participantes em limitar ou não o valor financeiro empreendido para a realização do ritual, e estas apresentaram a consideração de não abrir mão de alguns artefatos, objetos e serviços para a realização de seus sonhos, o que pode ser visível na fala de N3, “não há limites para a realização de um sonho, às vezes a limitação está em como vemos a situação e nos limites que nós mesmas colocamos, tudo é possível como força de vontade e esforço”. N9 também falou sobre a busca por realizar suas expectativas e demonstrou arrependimento quando não o fez: 

Eu liguei na floricultura, liguei para a cerimonialista, né, e pedi para trocar as flores,  mesmo pagando muito mais caro, porque eu tenho certeza de que se eu não tivesse feito isso eu ia me arrepender, como eu me arrependo de alguns outros detalhes, por exemplo do vestido, algumas coisas que eu pensei e mudar e falei “ai, não vou ser chata de ficar mudando agora, né” não mudei, me arrependo, me arrependi e me arrependo até hoje. (N9)

Diante da compreensão que a vulnerabilidade do consumidor põe à prova suas experiências de consumo, buscou-se compreender se a deficiência acarretou alguma implicação na cerimônia (BAKER; GENTRY; RITTENBURG, 2005; HAMILTON; DUNNET; PIACENTINI., 2015).  

Então, eu acho que não, porque assim, tudo o que eu pensava em fazer, eu fiz. Então assim, eu dancei [...] Então eu considero que tudo o que eu faria se eu andasse, eu fiz, lógico que de forma diferente, no caso eu dancei na cadeira, mas enfim, eu acho que não houve nada, nenhum fator que pudesse ter influenciado decorrente a isso. (N3)

Não, eu até tinha medo de não dar certo, mas deu! O dia da noiva foi no piso de cima e meu irmão me desceu no colo, mas até isso achei lindo, é uma recordação da realização de um sonho onde outras pessoas contribuíram pra deixar especial independente das minhas limitações. (N4)

As participantes demonstraram que a experiência não foi comprometida de forma alguma, quando percebiam qualquer problema, buscavam alternativas a garantir que o momento fosse como o desejado (BAKER; MASON, 2012). Esse achado se apresenta de maneira parecida com os de Echeverri e Solomonson (2019) no contexto de serviços de mobilidade, a forma a qual esses consumidores lidam com situações negativas é subjetiva, podendo ser proativa ou reativa. Portanto, percebe-se que, as participantes da pesquisa podem experienciar a vulnerabilidade das duas formas, em decorrência do estado individual e pela deficiência. Pela falta de conhecimento sobre o mercado de noivas e as práticas que nele ocorrem e diante das barreiras impostas em relação à deficiência, principalmente em caráter estrutural. 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desta pesquisa foi compreender como mulheres com deficiência física vivenciam o processo ritualístico do casamento sob a perspectiva da vulnerabilidade do consumidor. Os dados demonstram que, as mulheres com deficiência física, no planejamento do casamento, podem vivenciar a vulnerabilidade de duas maneiras, pelo estado individual e pela deficiência. A primeira razão se dá pela transição de papel, noiva para esposa e pela importância que se é atribuída socialmente à realização da cerimônia do casamento. Quanto à deficiência, a possibilidade da vulnerabilidade se dá por questões de acessibilidade dos ambientes físicos, roupas e pela visão capacitista e discriminatória ainda forte na sociedade.

Cabe ressaltar que, as participantes entendem que se encontram como consumidoras potencialmente vulneráveis pelas duas razões. Por saberem da possibilidade, muitas vezes, se apresentam de maneira proativa e resiliente, antecipando possíveis respostas às situações de vulnerabilidade ou ressignificando momentos. Assim, é fundamental que o mercado de casamentos adote uma abordagem proativa em relação à inclusão, desenvolvendo práticas comerciais e de serviço que transcendam a mera reação às necessidades das consumidoras com deficiência. Essas práticas devem antecipar-se na identificação e eliminação de barreiras potenciais, evitando que se transformem em impedimentos significativos. Este esforço reflete uma compreensão das vulnerabilidades enfrentadas por consumidoras com deficiência, que frequentemente se deparam com obstáculos não apenas físicos, mas também sociais e emocionais, no acesso a bens e serviços no mercado nupcial.

Reconfigurar as estratégias de marketing para retratar mulheres com deficiência de maneira autêntica e respeitosa não apenas aborda essas vulnerabilidades, mas também celebra a resiliência dessas consumidoras. A resiliência, entendida aqui como a capacidade de superar desafios e barreiras, deve ser reconhecida e valorizada no desenvolvimento de produtos e serviços. Assim, envolver consumidoras com deficiência diretamente no processo criativo não é apenas uma questão de inclusão, mas também uma oportunidade de capturar e incorporar a resiliência em inovações que beneficiem todo o mercado.

Este enfoque não apenas atende às necessidades específicas desse grupo, mas enriquece o mercado com novas perspectivas e soluções inovadoras. Portanto, o compromisso com a pesquisa e o desenvolvimento contínuos é vital para assegurar a oferta de produtos que sejam não apenas acessíveis, mas que também reflitam as últimas tendências da moda e atendam às expectativas das noivas com deficiência. Assim, ao reconhecer a vulnerabilidade e fomentar a resiliência, o mercado de casamentos pode se tornar verdadeiramente inclusivo, oferecendo experiências significativas e valorosas para todas as noivas.

Quanto às limitações do estudo, de início se esperava realizar a pesquisa com mulheres que estivessem vivenciando o processo transitório do casamento. No entanto, devido ao cenário pandêmico, não foi possível encontrar mulheres com esse perfil. Outro ponto é que, existem diferentes tipos de deficiência que podem apresentar as possibilidades de vulnerabilidade em outras formas. A partir dessas limitações, sugere-se a realização de estudos com mulheres que estão vivenciando esse processo. Além disso, durante as análises e reflexões, surgiram novos insights para estudos, tais quais, estudar sobre consumidoras com deficiência nos serviços de beleza e lazer.

 

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